domingo, 9 de março de 2014

O híbrido - Parte III

Parte III

Começar a seguir esse novo caminho sozinho não foi uma tarefa difícil para o híbrido.
Longe da multidão, absorto, passou a refletir sobre toda a construção do seu ser desde o momento que foi entranhado nesse mundo. Sempre achou tão injusto o modo como ele foi introduzido a toda essa nova realidade sem conhecimento prévio algum dela, e sem nem ao menos lembrar-se de como surgiu e de onde veio. Mas divagando, deu-se conta de que, mesmo não sabendo de nada, havia nele a certeza da necessidade de um propósito. Essa busca pelo amor e pela felicidade talvez o levasse a algum lugar, talvez as suas questões fossem respondidas. Estava esperançoso, como sempre.
 Na sua jornada, encontrou no meio do caminho algo que o surpreendeu: Alguém estava apressadamente vindo à direção oposta da qual ele estava seguindo. Esse ser também tinha asas! E era a criatura mais obscura e encantadora que já tinha visto. O híbrido havia encontrado outro semelhante a ti e isso o deixou perplexo. E foi tomado por uma súbita vontade ferrenha de se juntar a ele - e ao mesmo tempo por um medo de se aproximar por causa de sua insegurança. Por impulso, após ele passar ao seu lado e seguir em frente para o caminho que ele já tinha passado, o híbrido deu meia volta e passou a segui-lo, e logo estava no meio da multidão novamente.
Passou a observar sem ser observado todos os passos daquele ser estonteador. Adquiriu certo vício a aprender sobre ele. Reparou que o seu semelhante levava uma vida parecida com a que ele tinha antes de se emancipar. Viu-se imerso nos encantamentos desse outro híbrido tão profundo, introspectivo, poético e misterioso. Foi seduzido por alguém que parecia intrinsecamente ser uma cópia de si mesmo. Isolado na multidão; assim como ele já esteve. Sentiu que precisava se aproximar. Escreveu uma mensagem para isso e, após muita relutância, tomou coragem e a entregou. Foi tudo tão rápido...
Ele sabe que o assustou, apesar dele ter se mostrado curioso a seu respeito.  Quando tiveram a chance de se comunicarem, passaram a conhecer um ao outro. O híbrido perdido indicou o caminho que estava seguindo e, corajosamente, perguntou se o outro queria voltar pra lá junto com ele, para aquela busca. E então, o misterioso ser se assustou mais uma vez com o jeito apressado desse surpreendente estranho, e ao mesmo tempo tão familiar, que chegou até ele. Não deu uma resposta de imediato, mas alertou que já tinha ido por aquele caminho e que inclusive já aprendeu a voar! Mas a sua queda foi fatal e o machucou de uma maneira que quase o fez perder a vida; e por isso, havia prometido a si mesmo que nunca mais iria por lá novamente.

Mas ainda sim, o híbrido queria aprender a voar. Achou que esse outro poderia ensiná-lo...

segunda-feira, 3 de março de 2014

O híbrido - Parte I e II

Parte I

Quando abriu os olhos, viu-se perdido e sozinho no meio de uma multidão. 
Suas memórias estavam dispersas. A única clareza que tinha em mente era que precisava percorrer um árduo caminho nesse novo mundo que adentrou sem nem saber direito como. Estava tão confuso que desconhecia sua própria identidade – antes tinha a certeza de que era um anjo, mas ele não tinha asas, então concluiu que não podia voar, e por isso ele não era um anjo. Estava perdido, com medo e com uma angústia crescente no seu intrínseco. Como ele seguiria esse caminho que estava predestinado a seguir sendo que nem ao menos conseguia descobrir quem ele era?
O céu estava cinza e as pessoas estavam dispersas caminhando sobre uma vastidão de chão asfaltado por paralelepípedos. Passou por uma vidraça e viu no reflexo de si que tinha as mesmas características que todos aqueles outros seres tinham, embora fosse mais estranho e desajeitado – talvez pela confusão interior em que se encontrava. Mas mesmo assim, não se deixou enganar. Sabia que era diferente e todo o resto deu a entender que sabia disso também. Ele sentiu isso nos olhares que o encararam. Mesmo assustado, nas dificuldades que o permeavam por ser um indivíduo solitário, tentou buscar ajuda. E nessa tentativa foi ignorado, rejeitado e até mesmo humilhado. Isso o entristeceu e fez com que percebesse que estava no meio de monstros. E se tinha monstros, deveria haver alguns anjos, sem asas, escondidos e calados pela maioria que amedronta E é claro, provavelmente em algum lugar os deuses observavam a todos.
Ele não podia ficar ali parado. Portanto, na esperança de encontrar o seu rumo, partiu pela única opção que tinha: Seguir o rumo de todos os outros que ali se encontravam – e isso o afligia mais do que qualquer coisa. Estava seguindo um caminho que não conhecia para conhecer o seu próprio. Emergiu-se no desconhecido e infiltrou-se silenciosamente entre os monstros para tentar resgatar a sua alma angelical que se perdeu em algum lugar. Ele era o nada. Inócuo. Aliás, tudo ali também era um grande vácuo.
E ele não sabia de nada...

 Parte II

Passou-se muito tempo, e aquele ser não identificado já não estava mais perdido, nem sozinho. No início, apresentou-se como um papel em branco, e agora foi tão rabiscado que se concretizou como uma arte abstrata. Descobriu que era sim um anjo e as suas asas desabrocharam, mas elas são negras e o pesar de tudo que se tornou naquele mundo o impede de voar.
O fato é que, sem saída, ele não pôde escapar da multidão e se tornou parte dela. Ele se adaptou ao mundo e absorveu um pouco de tudo pelo que passou. Apesar de que a essência de indivíduo perdido e solitário permaneceu. A sua redescoberta como anjo foi após a transgressão de criar uma fantasia de monstro, abalando a sua moralidade e tornando-o um hipócrita. Mas ele não tinha culpa de nada disso. Não havia nenhum manual de instruções para ajudá-lo, e já estava cético de que não existia mais nenhum rumo. Se não conseguia lembrar-se de seu início, não compreendia o seu presente, então como saberia de seu fim?
Foram muitos os aprendizados que adquiriu ao longo dessa viagem sem fim nesse novo mundo. Ele finalmente construiu uma espécie de identidade e adquiriu valores. Aprendeu até a lidar com sentimentos de uma maneira racional! O novo se desmistificou em sua vida sem significado nessa terra em que tudo parece ser totalmente aleatório – ou exatamente o oposto disso.
Apesar de ter adquirido malícia, sua inocência foi, em partes, mantida. Apesar de todo o sofrimento, ele também possuía ainda a esperança e o otimismo. Ele se tornou generoso e ao mesmo tempo egoísta; Um pouco rancoroso e ao mesmo tempo complacente. Ele agora é uma contradição sem sentido e odeia isso – e mesmo assim aprendeu a ter estima por si mesmo.
No meio dessa espécie que ele aprendeu a conhecer e a conviver, esse ser que é um híbrido de monstro e anjo encontrou companhias agradáveis que estão com ele até hoje. Essas das quais aprendeu que pode chamar de “amigos”. Mas mesmo com a identificação e aceitação deles, ainda se sentia solitário. Ouvia-se falar muito sobre “felicidade”. Quando pediu aos amigos pelo significado disso, não compreendeu e percebeu que não tinha aquilo plenamente – e duvidou que existisse.
 Então deu uma missão a si mesmo: Buscá-la. Essa tal de felicidade. Entendeu que isso estava atrelado a outra coisa da qual não tinha muita compreensão também: Amor.
E foi aí que ele descobriu que podia talvez encontrar um rumo, mas dessa vez precisava trilhar o caminho sozinho...