terça-feira, 2 de setembro de 2014

Carnificina e renascimento

Às vezes tenho um desagradável encontro com um dos Eus que deixei pra trás. Sinto-me frustrado por ele ainda conseguir me alcançar. Eu o abandonei! Não o quero! Penso em matá-lo, como fiz com tantos outros... Mas aí o meu medo seria da vontade fênix dele. Não posso aniquilar o imorredouro. Invariavelmente, muitas vítimas da carnificina daqueles que constituíram o meu ser se renascem.  É inevitável.  A essência não se desfaz de suas partículas, apesar de algumas se enfraquecerem enquanto outras evoluem constantemente.
Fico em um impasse terrível: sinto uma tremenda antipatia por aquele que foi Eu, mas eu o amei enquanto ainda era, sendo assim, acho indigno julgá-lo mal. O problema é que o meu Eu adiante é egoísta. Só quer saber dele. Mas aquele que está à frente não pode se esquecer da dependência que tem com o que ainda está aqui e da dívida que ele tem com todos os que o fizeram nascer – os quais são injustamente humilhados por mim. Como este que vem me alcançando. Eu o enojo. Esse Eu de antes me irrita extremamente hoje. E causa ansiedade no próximo.  O próximo que logo já ansiará o próximo, e o próximo, e o próximo... Em um ciclo (in)finito - como tudo na vida.
Estamos todos presos a uma essência. Essa que nos faz um só. Existe uma eterna aliança entre os Eus que definem o Eu.
Obrigatoriamente necessito lidar com as mortes e ressurreições deles, de mim. Faço, me refaço. Crio, destruo. Autodestruo. Edifico-me. Enalteço-os e em um minuto posso os rebaixar. Não me suporto. E então desejo acarinhar-me de tanto amor próprio. A contradição fere e ao mesmo tempo move. É o impulso para o funcionamento dessas partículas.
É crível afirmar que se elas pararem, caso se rendam à indiferença, pode causar uma carnificina geral e então até mesmo a raiz seria cortada.
Por isso, morro, mas renasço.



domingo, 3 de agosto de 2014

O sonhador

Cansado de tanto caminhar, o sonhador estava sentado no meio do mato, encostado a uma árvore de raízes antigas. Sentiu que precisava de um longo período de descanso.
Porém, só o seu corpo entrou em estado de repouso. No seu íntimo, predominava a confusão dos pensamentos e a balbúrdia das sensações. Era uma contradição estranha e recorrente em sua vida – e muito incomum nos dias atuais: Tudo ao seu redor emanava tranquilidade, mas o seu espírito clamava por paz e equilíbrio. Ele estava em um desespero que não era expresso ao mundo. O seu torturador só era conhecido por ele mesmo: porque era ele. O sonhador era criador e autodestrutivo. E essa destruição também era uma construção.
Toda essa tortura era movida pelo seu principal ofício: o de sonhar. A sua caminhada que levou ao cansaço era guiada pelos sonhos. O inimigo que mantém a inexistência da paz e equilíbrio de sua alma também.  Mas esse inimigo era o seu principal motivador, aquele que também mantém a chama da esperança acesa. A vida é um jogo, e o sonhador só sabia jogar com passos largos. Sempre ansioso. Sempre visando o que há à frente. Procurando aquilo que ele ainda não tem.
Ainda em repouso, fechou os olhos e tentou não pensar em nada. Nada. Tão improvável. Não há o ‘nada’ para pensar, o espaço sempre se ocupa. E por isso, as reflexões, as lembranças e os medos foram surgindo. E os sonhos, sempre os sonhos.
Aos poucos, isso já não o torturava mais e se tornou a sua única maneira de se sentir tranquilo. Talvez a tortura estivesse mais ligada à resistência da realidade do que a realidade em si.
Já descansado e com um requinte dos prazeres da natureza e do ócio, decidiu que estava pronto para voltar a caminhar. E dessa vez, o sonhador estava feliz por ser aquilo que ele era. Sonhar era uma dádiva. Enquanto permanecesse vivo e seu jogo intacto, o sonhador simplesmente sonharia.


sábado, 3 de maio de 2014

O Híbrido - Parte IV e Parte Final


PARTE IV

                 Apesar de ter asas, o híbrido teve de manter os pés no chão.
Naquela realidade, voar era como um sonho utópico. Aliás, voar era possível sim, mas também havia a queda imprescindível como consequência. Então surgia o medo que paralisava a vontade de alçar voo novamente.
Ele nunca deixou de passar por um constante processo de aprendizagem. Algumas coisas foram fáceis de aprender e usar deste conhecimento; Outras ele teve que passar por experiências das mais dolorosas para só então entender. Aprendeu coisas importantíssimas ligadas à sua busca - a da felicidade - e descobriu que era inútil perseguir algo que não existe em sua plenitude. Foi frustrante para esse ser, mas só após essa e muitas frustrações descobriu algo bem simples pra qualquer um: Viver não é fácil. Até mesmo o amor, sentimento que pensou ser tão puro e simples, era um dos mais complicados. Achou que por ter carinho e predisposição para o próximo, amar era tarefa que se tirava de letra. Mas enganou-se. 
 A relação que passou a ter com aquele outro que tornou-se seu companheiro foi o estopim para várias reflexões acerca de como ele era e como lidava com o íntimo e as pessoas em geral. Este companheiro, que se considerava mais monstro do que híbrido, prostrou-se com muita paciência e confiança para esse estranho aparentemente inocente e ingênuo híbrido que apareceu na vida dele. E nessa relação, esse último aprendeu valores de companheirismo, confiança, respeito, liberdade e independência. Claro que passou por muitas dificuldades para aprender tudo isso, mas o mais importante é que superou todas elas. Iniciou também um processo de olhar mais para o seu interior. A reconhecer-se antes de tentar reconhecer o outro.
As experiências pelas quais o doce ser passou na vida antes de adentrar nessa realidade obscura ainda não lhe vem à memória, mas certamente houve situações que o traumatizaram.
Em um determinado momento de reclusão, quando se viu distante do companheiro do qual criou tanta dependência e sentimento, os Deuses entraram em contato com o híbrido. Revelaram-lhe que eram a sua família. A sua origem. E então ele se lembrou - e foi uma lembrança dolorosa.
Os Deuses estavam decepcionados com o lado monstro dele. Diziam que o anjo deveria prevalecer. Mas não, não! Tudo aquilo era muito injusto! A monstruosidade era parte dele e ele não considerava feia, e sinceramente, nem bonita. Apenas realidade.
O que os Deuses poderiam saber da realidade que foi lhe mostrada de maneira tão cruel?!

PARTE FINAL

Muito tempo depois, o híbrido compreendeu os deuses.
De início, ele não quis aceitar a sabedoria dos mais velhos, pois era teimoso. Escutou conselhos de pessoas experientes e rejeitou todos, pois a sua arrogância e seu egocentrismo predominavam no estilo de vida que ele estava levando. Apesar de que não poderia ser diferente, ele não tinha como modificar-se. O seu orgulho era um marco. Suas decisões eram inquestionáveis por terceiros, porque ele seguia o seu coração. E foi assim, seguindo o seu instinto, que ele aprendeu. E aprendeu bem.
Foi preciso que ele perdesse tudo. Aquele que o acompanhava, encontrou outra pessoa e o abandonou. Toda essa vida construída em sua mente ilusória foi desmanchada. Então, quando voltou a realidade de si e ao conhecimento de sua origem, o retorno de suas memórias, sua vida se fixou. E ele era um novo ser.
Nessa sua nova perspectiva, passou a entender o que antes era ininteligível para si. O apego era estupidez, as necessidades escassas, e o amor deve estar dentro de si, e assim, a felicidade só depende dele mesmo. Somente o híbrido pode fazer seu voo. Somente o híbrido pode cortar suas próprias asas. E somente os seus deuses podem salvá-lo em momentos de apuros. Ele ainda tem o outro lado de seu ser, o famigerado "monstro", que quer experimentar o novo, que quer sorver de cada momento, cada prazer, que precisa ser preenchido por fatores externos. A sua luz vem de dentro, mas a escuridão o cobre. O anjo maculado. O monstro abençoado.E ele voa. Voa alto. O híbrido segue seu caminho convicto. Não pleno, mas firme.

Até o momento em que ele se tornar também um deus e construir seu próprio reino. 

domingo, 9 de março de 2014

O híbrido - Parte III

Parte III

Começar a seguir esse novo caminho sozinho não foi uma tarefa difícil para o híbrido.
Longe da multidão, absorto, passou a refletir sobre toda a construção do seu ser desde o momento que foi entranhado nesse mundo. Sempre achou tão injusto o modo como ele foi introduzido a toda essa nova realidade sem conhecimento prévio algum dela, e sem nem ao menos lembrar-se de como surgiu e de onde veio. Mas divagando, deu-se conta de que, mesmo não sabendo de nada, havia nele a certeza da necessidade de um propósito. Essa busca pelo amor e pela felicidade talvez o levasse a algum lugar, talvez as suas questões fossem respondidas. Estava esperançoso, como sempre.
 Na sua jornada, encontrou no meio do caminho algo que o surpreendeu: Alguém estava apressadamente vindo à direção oposta da qual ele estava seguindo. Esse ser também tinha asas! E era a criatura mais obscura e encantadora que já tinha visto. O híbrido havia encontrado outro semelhante a ti e isso o deixou perplexo. E foi tomado por uma súbita vontade ferrenha de se juntar a ele - e ao mesmo tempo por um medo de se aproximar por causa de sua insegurança. Por impulso, após ele passar ao seu lado e seguir em frente para o caminho que ele já tinha passado, o híbrido deu meia volta e passou a segui-lo, e logo estava no meio da multidão novamente.
Passou a observar sem ser observado todos os passos daquele ser estonteador. Adquiriu certo vício a aprender sobre ele. Reparou que o seu semelhante levava uma vida parecida com a que ele tinha antes de se emancipar. Viu-se imerso nos encantamentos desse outro híbrido tão profundo, introspectivo, poético e misterioso. Foi seduzido por alguém que parecia intrinsecamente ser uma cópia de si mesmo. Isolado na multidão; assim como ele já esteve. Sentiu que precisava se aproximar. Escreveu uma mensagem para isso e, após muita relutância, tomou coragem e a entregou. Foi tudo tão rápido...
Ele sabe que o assustou, apesar dele ter se mostrado curioso a seu respeito.  Quando tiveram a chance de se comunicarem, passaram a conhecer um ao outro. O híbrido perdido indicou o caminho que estava seguindo e, corajosamente, perguntou se o outro queria voltar pra lá junto com ele, para aquela busca. E então, o misterioso ser se assustou mais uma vez com o jeito apressado desse surpreendente estranho, e ao mesmo tempo tão familiar, que chegou até ele. Não deu uma resposta de imediato, mas alertou que já tinha ido por aquele caminho e que inclusive já aprendeu a voar! Mas a sua queda foi fatal e o machucou de uma maneira que quase o fez perder a vida; e por isso, havia prometido a si mesmo que nunca mais iria por lá novamente.

Mas ainda sim, o híbrido queria aprender a voar. Achou que esse outro poderia ensiná-lo...

segunda-feira, 3 de março de 2014

O híbrido - Parte I e II

Parte I

Quando abriu os olhos, viu-se perdido e sozinho no meio de uma multidão. 
Suas memórias estavam dispersas. A única clareza que tinha em mente era que precisava percorrer um árduo caminho nesse novo mundo que adentrou sem nem saber direito como. Estava tão confuso que desconhecia sua própria identidade – antes tinha a certeza de que era um anjo, mas ele não tinha asas, então concluiu que não podia voar, e por isso ele não era um anjo. Estava perdido, com medo e com uma angústia crescente no seu intrínseco. Como ele seguiria esse caminho que estava predestinado a seguir sendo que nem ao menos conseguia descobrir quem ele era?
O céu estava cinza e as pessoas estavam dispersas caminhando sobre uma vastidão de chão asfaltado por paralelepípedos. Passou por uma vidraça e viu no reflexo de si que tinha as mesmas características que todos aqueles outros seres tinham, embora fosse mais estranho e desajeitado – talvez pela confusão interior em que se encontrava. Mas mesmo assim, não se deixou enganar. Sabia que era diferente e todo o resto deu a entender que sabia disso também. Ele sentiu isso nos olhares que o encararam. Mesmo assustado, nas dificuldades que o permeavam por ser um indivíduo solitário, tentou buscar ajuda. E nessa tentativa foi ignorado, rejeitado e até mesmo humilhado. Isso o entristeceu e fez com que percebesse que estava no meio de monstros. E se tinha monstros, deveria haver alguns anjos, sem asas, escondidos e calados pela maioria que amedronta E é claro, provavelmente em algum lugar os deuses observavam a todos.
Ele não podia ficar ali parado. Portanto, na esperança de encontrar o seu rumo, partiu pela única opção que tinha: Seguir o rumo de todos os outros que ali se encontravam – e isso o afligia mais do que qualquer coisa. Estava seguindo um caminho que não conhecia para conhecer o seu próprio. Emergiu-se no desconhecido e infiltrou-se silenciosamente entre os monstros para tentar resgatar a sua alma angelical que se perdeu em algum lugar. Ele era o nada. Inócuo. Aliás, tudo ali também era um grande vácuo.
E ele não sabia de nada...

 Parte II

Passou-se muito tempo, e aquele ser não identificado já não estava mais perdido, nem sozinho. No início, apresentou-se como um papel em branco, e agora foi tão rabiscado que se concretizou como uma arte abstrata. Descobriu que era sim um anjo e as suas asas desabrocharam, mas elas são negras e o pesar de tudo que se tornou naquele mundo o impede de voar.
O fato é que, sem saída, ele não pôde escapar da multidão e se tornou parte dela. Ele se adaptou ao mundo e absorveu um pouco de tudo pelo que passou. Apesar de que a essência de indivíduo perdido e solitário permaneceu. A sua redescoberta como anjo foi após a transgressão de criar uma fantasia de monstro, abalando a sua moralidade e tornando-o um hipócrita. Mas ele não tinha culpa de nada disso. Não havia nenhum manual de instruções para ajudá-lo, e já estava cético de que não existia mais nenhum rumo. Se não conseguia lembrar-se de seu início, não compreendia o seu presente, então como saberia de seu fim?
Foram muitos os aprendizados que adquiriu ao longo dessa viagem sem fim nesse novo mundo. Ele finalmente construiu uma espécie de identidade e adquiriu valores. Aprendeu até a lidar com sentimentos de uma maneira racional! O novo se desmistificou em sua vida sem significado nessa terra em que tudo parece ser totalmente aleatório – ou exatamente o oposto disso.
Apesar de ter adquirido malícia, sua inocência foi, em partes, mantida. Apesar de todo o sofrimento, ele também possuía ainda a esperança e o otimismo. Ele se tornou generoso e ao mesmo tempo egoísta; Um pouco rancoroso e ao mesmo tempo complacente. Ele agora é uma contradição sem sentido e odeia isso – e mesmo assim aprendeu a ter estima por si mesmo.
No meio dessa espécie que ele aprendeu a conhecer e a conviver, esse ser que é um híbrido de monstro e anjo encontrou companhias agradáveis que estão com ele até hoje. Essas das quais aprendeu que pode chamar de “amigos”. Mas mesmo com a identificação e aceitação deles, ainda se sentia solitário. Ouvia-se falar muito sobre “felicidade”. Quando pediu aos amigos pelo significado disso, não compreendeu e percebeu que não tinha aquilo plenamente – e duvidou que existisse.
 Então deu uma missão a si mesmo: Buscá-la. Essa tal de felicidade. Entendeu que isso estava atrelado a outra coisa da qual não tinha muita compreensão também: Amor.
E foi aí que ele descobriu que podia talvez encontrar um rumo, mas dessa vez precisava trilhar o caminho sozinho...




quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Nudez

por Matheus Campos

Sinto um calor absurdo enquanto caminho e percebo que o céu está nu. Sem nuvens que indiquem posterior chuva, sem nenhuma possibilidade de sombra num campo aberto. É inegavelmente bonito, mas um pouco desagradável. A nudez do céu aberto iluminado pelos raios de sol não abre espaço para a graciosidade dos ventos mais suaves. Sinto-me exposto e meu suor me incrimina.
Abismado pela ousadia do universo de escancarar parte de sua grandeza, quis fazer o mesmo. Tive um súbito desejo de também ficar nu. Sem vergonha, sem medo da humilhação: queria me desafiar não apenas a uma quebra de tabu, mas também para compreender se a liberdade da minha natureza é comparável a do mundo que me sonda.

Quão invulgar seria se existíssemos à nossa maneira? Se não renunciássemos aos nossos demônios sem deixar de valorizar nossas virtudes?  Somos condicionados a nos esconder: cobrir para manter seguro. A falsa segurança que não possibilita a leveza da nudez diante de outros. Não somente a do corpo, mas as camadas de vestimentas que permeiam as nossas almas.

Revelar-se é um ato revolucionário.  Despir-se. A nudez da palavra dita ao invés do silêncio que grita. A nudez das sensações. A nudez dos sentimentos poeticamente estruturados.  A nudez percebida pelo olhar do outro, que é também uma revelação.

A condição humana nos torna seletivos em relação ao que revelamos. Mas é incontestável que há certo charme nisso - nos nossos mistérios tão semelhantes que, no final das contas, ninguém tem mistério nenhum.

Somos seduzidos a buscar o oculto. O prazer de revelar o que está por trás. Há dois flancos: a vestimenta do corpo e a roupa da essência, a personalidade.

O corpo exposto sem pudor é o grito de alívio após tempos de sufoco. Cada olhar é um resgate. Cada toque é uma libertação. Orgasmo é uma forma de adoração: percorrer inteiramente pela nudez do outro e percorrer por si mesmo, com prazer, é a exaltação da alma.

Já a nudez que representa a honestidade do Ser - por exemplo, pelos olhares, sorrisos, abraços, etc. -, muitas vezes é velada. O afeto verdadeiro é difícil de descobrir, mas é o que tem o maior potencial de nos despir profundamente.

Quem dera pudéssemos estar preparados para o nu em sua totalidade, no coletivo. Não estaremos. Não há a liberdade necessária. Até o céu ganha a roupagem das nuvens, das estrelas. E o meu corpo, quente, por ter o Sol como alma, é coberto.
Minha nudez esfria.