Uma ode à melancolia
Autor
faz uma alegoria ao sofrimento humano em obra de suspense
Por Matheus Campos
“Escrever é um exorcismo do medo e do ódio; pode ser uma forma de
superar o preconceito e a dor. Se puder escrever, você pelo menos tem uma
chance de se expressar... pode expor seus pensamentos ao mundo, e mesmo se
ninguém de fato os ler ou os compreender, eles já não estarão presos dentro de
você.” p.79
A melancolia
é, provavelmente, a maior aliada de um escritor. Em uma composição de Tom Jobim
e Vinicius de Moraes, eles poetizam "Assim como uma nuvem só acontece se
chover; Assim como o poeta só é grande se sofrer" – eis uma verdade
incontestável.
"Uma
crença silenciosa em anjos" é uma obra classificada como um suspense
policial e, de fato, é um bom livro inserido no contexto desse gênero. Mas o
que realmente chama atenção nele são as reflexões que o compõem. Palavras sobre
perda culpa, medo e injustiça, das quais são marcadas nos olhos dos leitores e
sentidas com a mesma angústia que o autor passou. Não, não é uma obra
autobiográfica, mas, no desenrolar das páginas, de acordo com o tom poético e
profundo que acompanha a história do personagem central, só poderia ser escrita
por alguém que realmente entende sobre esses detalhes da vida. E as
experiências reais do autor inglês Roger Jon Ellory comprovam isso.
Ficção e realidade
Ellory, desde
criança, passou por situações das quais levaram sua ingenuidade inerente da
infância ruir de maneira precoce. A morte foi um dos fatores presentes: a mãe
morreu de pneumonia quando ele tinha apenas 7 anos. Além disso, ele nunca
conheceu seu pai e, conseguinte à perda da mãe, logo perdeu os avós também, o
que levou a ser criado em um internato até os 16 anos – onde desenvolveu seu
amor pela leitura, especialmente por autores como Truman Capote, Charles
Dickens e Agatha Christie.
Há uma clara
analogia entre esses fatos da biografia do autor e os que acontecem na vida de
Joseph Vaugham, protagonista de “Uma crença silenciosa em anjos”, que foi seu
quinto livro, publicado em 2005 (Ellory, nascido em 1965, só começou a escrever
livros em 1997 - todos no gênero de suspense e relativamente bem avaliados pela
crítica). Na história fictícia, o garoto de 12 anos vê seu pai falecer e passa
a viver apenas com a mãe. Por ser religioso e ler a bíblia, tem um grande
interesse pelos anjos descritos e, por isso, acreditou que após a morte seu pai
se tornaria um.
Sempre muito inteligente e leitor assíduo,
sonha em se tornar um escritor bem sucedido. É muito influenciado pela sua
professora, a Srta. Alexandra Webber, no âmbito educacional e pessoal, pois,
além de ser uma amiga conselheira, ela reconhece seus talentos e é a que mais o
incentiva para que ele, ainda pré-adolescente nessa parte, não pare de
escrever.
Em primeira
pessoa, a narrativa do livro alterna os capítulos entre dois períodos da vida
do protagonista: a do passado mais distante, que se desenrola linearmente, e
mostra os eventos que vão culminar à cena representativa dos capítulos nos
quais Joseph, já um homem adulto, está num quarto de hotel em que acabara de
ocorrer uma troca de tiros, na cidade de Nova York. Um corpo ensanguentado de
outro homem também está presente no local. Nesse aspecto, as reflexões do
personagem de acordo com a situação descrita remetem a um sentimento de culpa
e, ao mesmo tempo, resignação pelo que sua vida representou até aquele momento.
No outro
contexto já citado do Joseph de 12 anos, a ambientação começa no ano de 1939,
em Augusta Falls, um município rural na Geórgia, sul dos Estados Unidos. Para
criar uma interligação com a realidade da época, o autor faz um paralelo dos
acontecimentos regionais da ficção com os eventos da Segunda Guerra Mundial, o
que contextualiza os personagens aos assuntos ligados aos impactos políticos,
sociais e econômicos da guerra por meio de diálogos dos quais envolvem as
notícias que chegavam ao local.
O ponto
principal da história do livro inicia quando uma de suas colegas de escola é
assassinada brutalmente. A partir daí, começa uma série de crimes que envolvem
meninas estupradas e mortas por um suposto serial
killer - o perigo e o mistério da situação se tornam fatores de assombro na
vida das pessoas daquela cidade por anos. E isso vai afetar diretamente a
existência de Joseph e de entes queridos, o que causa profundos impactos
psicológicos nele, moldando seu caráter e personalidade.
Alguns dos
estupros são descritos de forma literal e seca, o que causa certo desconforto e
angústia ao ler. Essa característica da escrita de Ellory mexe essencialmente
no emocional do leitor. A ânsia por justiça e pela revelação do assassino nos
envolve tão veemente quanto ao Joseph.
Na história,
as consequências dos assassinatos revelam a natural desconfiança e tendência à
atitude injusta dos seres humanos em comunidades fechadas, em que predomina a
intolerância à diferença.
Apesar de ter
um desenvolvimento lento e repetitivo (a sensação é a de que o livro poderia
ter umas cem páginas a menos), a leitura prende não só pelas suposições e
reviravoltas, mas principalmente pelo teor poético que expõe a extrema
sensibilidade do autor quanto às questões humanas. Justamente por isso, não há
muita descrição de cenário ou características mais objetivas, pois o enfoque é
mais introspectivo pela ótica do personagem principal.
Aliás, ele
carrega toda a carga dramática do enredo. O autor propositalmente escreveu uma
história em que mostra como alguém pode sobreviver às piores dores - físicas e
sentimentais - e, mesmo assim, ainda prosseguir.
“Não sei como alguém pode suportar perder
tanta gente e ainda acreditar na bondade fundamental do ser humano.” p. 432
Joseph
observa e passa por tantas desgraças durante a narrativa que chega um momento
no qual podemos pensar que nada de bom vai durar para ele. Isso faz com que o
livro seja excessivamente triste e pesado.
Mas,
ironicamente, esses fatores não tiram a beleza da obra. O argumento principal
do livro como um todo é, justamente, a compreensão de que não há sentido na
vida sem as dores, a angústia, o sofrimento. É aquele clichê de que não
conhecemos o valor da luz sem antes passar pela escuridão. Por esses aspectos,
esse livro se consolida como uma ode à melancolia.
“Talvez alguns de nós voltem... talvez
alguns de nós tenham aprendido o bastante para fazer uma diferença, para
influenciar as situações para melhor... para ficar observando... para esperar a
hora certa e depois agir. E apesar das aparências, apesar de todas as
indicações em contrário, apesar da reserva por medo do que os outros pudessem
pensar, eu ainda sentia que todos nós tínhamos aquela crença silenciosa...” p.371
Vejo esse
livro como uma homenagem àqueles que creem em anjos - não necessariamente o ser
iluminado com asas de ave, mas sua simbologia: o anjo como uma forma imaterial
da esperança. O anjo como o ícone da superação.
Por todas às
vezes que cremos em anjos - silenciosamente ou de maneira gritante, tanto faz
-, essa obra merece ser lida.
Ficha técnica
ELLORY, R. J. Uma crença silenciosa em anjos.
Título
original: A quiet belief in Angels
Nº de páginas: 446
Editora: Intrínseca
Preço: R$ 39,90